A construção da cidadania trans
por Frederico Oliveira
Esse artigo tem a finalidade de refletir com mais
profundidade a posição do ilustre jurista Flávio Tartuce que, em apoio a uma
ultrapassada compreensão da medicina, trata a transexualidade como doença em
sua obra Direito Civil, vol. 5, o que foi alvo de questionamento da estudante
de Direito e transexual Bianca Figueira, conforme artigo postado nesse blog
semana passada.
Cumpre esclarecer que a missão do blog é provocar a reflexão
e o debate, propondo esclarecimentos com base nos direitos humanos fundamentais
sobre a forma mais adequada para se tratar os direitos e a realidade enfrentada
pelas pessoas LGBT. Nessa missão, busca-se a promoção do respeito à diversidade
sexual, como componente da natureza humana, mas que a sociedade menospreza, por
obediência a padrões tradicionais, históricos e culturais consolidados na
compreensão binária de gênero (macho e fêmea) e na heteronormatividade.
É essa visão limitada a respeito de sexualidade e gênero
que vem alimentando a homofobia e a transfobia de hoje, consolidada no Brasil
numa campanha difamatória contra a minoria que escapa
aos padrões da sexualidade. Atualmente, a questão dos direitos da diversidade
sexual está no centro do debate político em todo o mundo, com contornos que
variam conforme o sistema político que acolhe ou que rejeita esses indivíduos,
a exemplo de países subdesenvolvidos com regimes autoritários que chegam ao
cúmulo de criminalizar a homossexualidade com pena de morte, e, por outro lado,
países socialmente mais desenvolvidos e democráticos que, ao se abrirem aos
estudos de sexualidade e gênero, reconheceram direitos plenos às pessoas LGBT.
Como proposta para uma melhor compreensão da
realidade da diversidade sexual, esse veículo busca denunciar e combater a
homofobia e a transfobia, bem como todo o tratamento que empurra essas pessoas
para a marginalidade, como as posições e opiniões que consideram a condição de
qualquer uma das pessoas da sigla como anormalidade ou doença. No Brasil, a
população LGBT vem sendo alvo de uma campanha de interesses obscuros e
eleitoreiros para manipular as disputas políticas, por via de uma ideologia
conspiratória com a disseminação do medo de uma degeneração social que, no
curso da história, sempre se assentou no campo da sexualidade. Essa campanha tem como base sólida o ambiente heteronormativo e binário de
gênero que reputa como errado, como anormal e imoral a sexualidade que não se
adequa ao padrão socialmente consolidado por longos anos de dominação e
opressão que, em pleno século XXI, ainda coloca como tabu a compreensão mais
profunda das questões da sexualidade.
Também cumpre reforçar que a discussão não gravita
exclusivamente pelo fato de Tartuce ter feito o uso do termo “transexualISMO”
(o sufixo ISMO = doença), mas aclarar uma compreensão patologizante altamente
prejudicial para o tratamento de pessoas que, em função de sua transexualidade,
não estão de nenhuma forma incapacitadas ou inabilitadas, por essa razão, a
exercer ou desempenhar atividades cotidianas e habituais da vida pública e
privada.
Quando tive acesso ao desabafo de Bianca Figueira,
que também faz parte do meu grupo de amigos no facebook, sugeri que levássemos a questão para ser discutida
publicamente em meu blog, porque uma das maiores lutas da militância LGBT é a
despatologização da condição dessas pessoas, fato que vem sendo tratado nos
mais renomados eventos acadêmicos no mundo afora, inclusive com uma vasta
literatura a respeito da construção histórica, social e cultural de gênero
(masculino e feminino).
O ilustre jurista em resposta a mim dirigida se
coloca aberto ao debate, mas insiste em manter em seu livro a terminologia, ratificando
a classificação dessa condição humana como doença capitulada dentre os
transtornos mentais do Manual de Diagnósticos e Estatísticas (DSM), da
Associação Americana de Psiquiatria (APA) e da Classificação Internacional de
Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), arvorando-se, pois, na ultrapassada
compreensão médica a respeito do assunto.
Em primeiro lugar, para que possamos compreender a
realidade dessas pessoas socialmente vulneráveis, precisamos dar voz às suas angústias e aos
seus sofrimentos, para avaliarmos o modo mais adequado de fazer referência a
essa temática que, necessariamente deve ser avaliada de forma cuidadosa em
nossos discursos acadêmicos e jurídicos.
O emblemático caso de Bianca Figueira vem me chamando
atenção desde o dia em que a vi dando depoimento em seminário realizado ano
passado e organizado pela Comissão da Diversidade Sexual da OAB/SP que integro
como membro efetivo.
Bianca Figueira foi reformada pela Marinha do Brasil (MB),
em 2008, sob a alegação “da incompatibilidade administrativa que se criou entre
o novo estado psicofísico da militar e o exercício da profissão de Oficial da
Armada” (cf. declaração da MB), tendo sido considerada inabilitada para o cargo em razão da sua nova identidade
de gênero.
A reforma de Bianca se deu, não somente em razão de
sua nova condição feminina decorrente do processo transexualizador, mas também em
razão da classificação patológica dessa condição pelo manual de diagnóstico da
medicina, o que também serviu de embasamento para o corpo médico da Marinha
atestar sua incompatibilidade para o trabalho profissional.
1. A transexualidade: uma realidade a
ser compreendida
A “transexualidade é uma experiência identitária,
caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”. As transexuais são
pessoas que “ousam reivindicar uma identidade de gênero em oposição àquela
informada pela genitália e ao fazê-lo podem ser capturados pelas normas de
gênero mediante a medicalização e patologização da experiência”[1]
Trata-se de uma realidade que deve ser observada muito mais no plano antropológico e
psicológico do que no campo médico, vez que esse último serve apenas como
mecanismo para possibilitar, por meio do processo transexualizador
(hormonização e cirurgia de transgenitalização), a composição de uma identidade
psicologicamente consolidada em um gênero diverso do sexo biológico constatado
no momento do nascimento.
Orientação sexual (heterosexualidade, homossexualidade e bissexualidade) e identidade de gênero
(cisgênero e transgênero) são coisas distintas, tanto é que existem muitos
casos de travestis e transexuais lésbicas (no caso de trans mulheres que sentem
desejo e atração sexual por mulheres) ou gays (no caso de trans homens que
sentem desejo e atração sexual por homens).
A transexualidade não pode ser compreendida como uma mera adequação ao padrão biológico da compreensão da
heteronormatividade. Desse modo, a experiência científica, por mais de décadas
comprova suficientemente que o discurso biologizante e binário de gênero (macho
e fêmea) é furado, pois não se aplica às pessoas LGBTs.
2. A
medicina e o seu atraso na compreensão das questões de gênero e sexualidade
Ao lado da
medicina, que integra as ciências biológicas, existem estudos específicos a
respeito de sexualidade e gênero, tanto no campo das ciências sociais, a cargo da
antropologia e da sociologia; bem como da psicologia, todas reconhecidas
academicamente como ciências. Esses estudos não são, salvo em casos muito
especiais, transversalizados nas ciências médicas com suas ortodoxas
metodologias de investigação apropriadas ao campo fisiológico e anatômico dos
órgãos sexuais e demais composições biológicas e genéticas que possibilitam o
exercício da sexualidade.
A abertura da
medicina para a compreensão da problemática da violência contra a mulher e LGBT
ainda é pouco explorada para se combater determinadas doenças, a exemplo das
vulnerabilidades para a contaminação de DST/Aids e, também, da endometriose
que, em muitos casos, é diagnosticada tardiamente, em razão de uma visão
sexista ainda presente na medicina, que naturaliza as dores do período
menstrual e inviabiliza um diagnóstico precoce.
É importante
considerar que no Brasil vivem inúmeras transexuais que se livraram desses
protocolos médicos, submetendo-se à cirurgia de transgenitalização na Tailândia
ou em outros países, como foi o caso de Bianca e do recém noticiado caso da Delegada de Polícia de Goiânia, Laura de Castro Teixeira. Há também, inúmeros
casos em que a transexual não quer se submeter à cirurgia por medo da radical
mudança ou pelo receio de que perderá a sensibilidade para a prática sexual.
No curso do tempo,
o discurso médico aliado às forças conservadoras e religiosas serviu de
obstáculo para a emancipação das mulheres e dos direitos dos homossexuais. Esse
discurso justificou por muito anos o cenário da “dominação masculina”[2], impondo às mulheres a limitação do seu espaço
no campo doméstico, atrelando a sexualidade feminina para fins procriativos,
aprisionando as mulheres em seu próprio corpo, sob o contestável império do
instinto materno (nem todas as mulheres querem ter filhos).
Do mesmo modo, a
constatação médica serviu por longos anos de justificativa para que os
homossexuais (gays e lésbicas) e bissexuais fossem percebidos pela sociedade como
pessoas que padeciam de um transtorno que poderia ser revertido, limitando
também a sexualidade à uma finalidade procriativa, justificando aí, a
funcionalidade dos órgão sexuais. Afinal de contas, a Medicina considerou a homossexualidade como doença, utilizando a terminologia "homossexual-ISMO" no CID até 17/05/1990. Essa conquista fez com que a data fosse marcada em comemoração ao Dia Internacional de combate à homofobia.
Também, por muito
tempo o prazer sexual foi patologizado pela medicina, como eram as diretrizes
da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923 pelo psiquiatra Gustavo
Riedel, servindo-se de política de domesticação dos instintos sexuais para o
combate de doenças sexualmente transmissíveis e as falsas constataçoes de uma
teoria da hereditariedade em que se acreditava, por exemplo, que a miscigenação
racial colocaria a sociedade em risco de degeneração.[3]
Esse discurso
médico do passado, com relação à condição da mulher e dos homossexuais tem nos
dias de hoje consequências altamente danosas para a realidade dessas pessoas. Especialmente
no Brasil, existe uma grande resistência conservadora que povoa o debate
politico no sentido de se obstaculizar a legalização da interrupção da gravidez
até a 12 semana de gestação, devolvendo à mulher o seu corpo e a liberdade
reprodutiva; além da necessária aprovação de lei que, de forma expressa,
reconheça o casamento igualitário; bem como das políticas públicas adequadas no
campo da educação, saúde e segurança pública para a promoção da igualdade de
gênero e de uma cultura de respeito à diversidade sexual que são sempre
rechaçadas pelos segmentos mais conservadores da sociedade.
Inclusive, a
própria medicina vem sofrendo prejuízos com seu discurso do passado, pois,
encontra grandes dificuldades para estabelecer políticas preventivas de sucesso
no campo da saúde sexual e de métodos contraceptivos, diante das dificuldades
de assimilação da população, fruto de uma visão sexista que anteriormente
informava as ciências médicas. A saúde pública enfrenta, assim, problemas para
o combate de certas doenças, a exemplo do cancer de prostata diagnosticado peloexame de “toque retal” e das recentes resistências de certos grupos à vacinação de adolescentes contra o HPV como política de prevenção de cancer de cólo de
útero.
Essa explanação
não significa, por óbvio, um menosprezo às ciências médicas, mas serve de
alerta para confirmar que não se pode observar ou considerar a condição humana
apenas sob os aspectos biológicos.
É preciso, pois,
ir além da medicina que hoje, por falta de transversalidade com outras
ciências, infelizmente não traz respostas adequadas para a realidade vivida
pelas pessoas transexuais.
Precisamos antes
de qualquer coisa devolver humanidade para essas pessoas e para isso é
INADMISSÍVEL considera-las como anormais ou doentes.
DOENÇA significa
“1. Falta ou perturbação da saúde. 2. Vício; defeito.” o que demonstra ser inadequado
para a tratativa do tema.
O desejo de
adequação do corpo não pode ser considerado como transtorno mental que tenha
como destino a trangenitalização, especialmente porque se o Estado garantisse a
ideal dignidade e bem estar às pessoas transexuais, devolveria a elas a
plenitude de vida para se auto-determinar.
3. A
luta pelo reconhecimento das pessoas trans: as outras ciências e as questões de
gênero e sexualidade
A luta pelo
reconhecimento das travestis e transexuais traz muitas respostas a respeito da
questão identitária que são muito mais profundas do que os aspectos anatômicos
e fisiológicos dos órgãos sexuais. As travestis, por exemplo, se identificam de
maneira oposta aos padrões convencionados para o seu sexo biológico,
conformando-se com sua genitália. As transexuais, por outro lado, precisam dessa
identidade, adequando-se o sexo biológico, inclusive o aparelho sexual que gera, em muitos casos, a necessidade de trangenitalização.
O mais
interessante é que muitos discursos que defendem a manutenção do registro civil
de acordo com o sexo biológico do nascimento, não são avaliados em observância às
necessidades das pessoas travestis e transexuais, mas muito mais em razão do
tal receio ao “erro essencial sobre a pessoa” o que me parece um contrasenso
absurdo, sobretudo porque as pessoas se relacionam não com um órgão sexual, mas
se relacionam antes de tudo com o ser humano. Ou seja, o que importa nesse
raciocínio é o risco ou o medo de que terceira pessoa possa ser confundida
quanto ao órgão sexual que o indivíduo carrega em seu corpo, do que
propriamente o intuito de se proteger a condição das pessoas trans que, tendo ou
não respaldo na medicina, irão utilizar de meios outros para alcançar seus
objetivos, vide os inúmeros casos de siliconização, hormonização clandestina e
de automutilação muito comuns na realidade das transexuais por falta de
políticas de saúde adequadas a essa condição humana.
As transexuais
estão, pois, aprisionadas em um corpo tendo que se submeter ao controle da
sociedade, do Estado, da medicina e da Igreja, não lhes sendo dado o direito à
autonomia da vontade para deliberarem a respeito das modificações que
necessitam ser feitas, mesmo sendo elas irreversíveis e radicais.
As questões de gênero vem sendo enfrentadas desde os tempos dos
movimentos liberacionistas feministas, influenciados pela filósofa
francesa Simone de Beaurvoir, cujos
estudos tomaram força na década de 70, como forma de buscar soluções para a
problemática da desigualdade de gênero. Referidos estudos culminaram com a
Teoria Queer estabelecida “para a
compreensão da forma como a sexualidade estrutura a ordem social
contemporânea”, ganhando “notoriedade como contraponto crítico aos estudos
sociológicos sobre minorias sexuais e à política identitária dos movimentos
sociais”.[4] Esses estudos foram protagonizados por Steven
Seidman, Steven Epstein, Joshua Gamson, Judith Butler e Roderick Ferguson, impulsionando
a discussão a respeito da despatologização da condição das minorias sexuais, promovendo
a desvinculação/dissociação entre “GÊNERO”, referente a construção das identidades
masculina e feminina; “SEXO”, no aspecto biológico/genético; e “SEXUALIDADE”, como o modo como o indivíduo
interage com o seu corpo para o seu uso contextualizado no prazer e/ou no
afeto.
No Brasil os
estudos da Teoria Queer tiveram como
pioneira a Prof. Guacira Lopes Louro, da UFRS, articulando a questão para o
campo da educação, além de importantes pesquisadoras como Larissa Pelúcio e Berenice Bento. Essa teoria vem desde a década de 80 pesquisando
a respeito das identidades que escampam dos padrões sociais, tal como é o caso
da homossexualidade que foge da heteronormatividade;
e da transexualidade que foge do
binarismo de gênero (masculino e feminino) que impõe papéis, expressões e
comportamentos atrelados ao sexo biológico do indivíduo.
3.1. A transexualidade para a Psicologia
A Psicologia em
apoio a Campanha Internacional Stop Trans
Pathologization-2012, firmou o
entendimento no Brasil no sentido de que a identidade das pessoas trans
(travestis, transexuais) não devem ser percebidas como transtorno mental. A
Resolução n. 14 de 20 de junho de 2011 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) garantiu
o direito identitário aos psicólogos travestis e transexuais que poderão fazer
o uso do nome social em sua carteira profissional, independente de retificação
do registro civil.
O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [5], corroborando o entendimento do CFP, posicionou-se
no sentido de que:
As sexualidades, os
gêneros e os corpos que não se encaixam no binarismo convencional
(masculino/feminino, macho/fêmea) não podem servir de base para uma classificação
psicopatológica. A normatividade do binarismo de sexo e de gênero só permite
aos deslocamentos, como a transexualidade, a travestilidade, o crossdressing,
as drag queens, serem vistos como maneiras de existir desviantes, criando-se
categorias linguísticas e psiquiátricas que conferem inteligibilidade à
vivência
destas pessoas. Portanto, numa concepção
que desnaturalize o gênero, a pluralidade das identidades de gênero refere
possibilidades de existência, manifestações da diversidade humana, e não
transtornos mentais.
Ser
considerad@ um@ "doente mental" só traz sofrimento à vida de quem
possui uma identidade de gênero trans. (negritei) Apesar de considerar que vivências como a transexualidade e
a travestilidade podem e, em geral, geram muito sofrimento, entendemos que isto
tem mais a ver com a discriminação do que com a experiência em si. A
patologização das identidades trans fortalece estigmas, fomenta posturas
discriminatórias e contribui para a marginalização das pessoas. A
"doença" trans é social: é a ausência de reconhecimento destas
pessoas como cidadãs, é a ausência de reconhecimento de seu direito de existir,
de amar, de desejar e de ser feliz.”
3.2. A transexualidade para as Ciências Sociais
A socióloga Berenice Bento (vide o vídeo), seguida por uma série de estudiosos, representa hoje uma das pesquisadoras
brasileiras mais engajadas nos estudos da transexualidade, ao mergulhar por
três anos em pesquisa de campo no Brasil e na Espanha, investigando a realidade
vivida pelas transexuais que chegavam aos hospitais para se submeterem à
cirurgia de transgenitalização.
Em pesquisa de
campo em nível de doutorado, na Universidade de Brasília (UNB), Berenice
investigou com profundida a realidade vivida e sentida por essas pessoas que
tinham os ambulatórios dos hospitais como um perverso ritual de passagem. As
transexuais no Brasil para se submeterem ao processo transexualizador
necessitam passar por um estágio de 2 a 3 anos, submetendo-se à avaliação de
uma equipe muldisciplinar para autorizar a cirurgia.
Berenice Bento
contesta o discurso médico patologizante e constata que os protocolos
construídos nessa equivocada ambiência binária que normatiza gênero, não são
capazes de investigar de forma segura a real necessidade da pessoa para se submeter
à cirurgia de transgenitalização. Na realidade as transexuais se vêem obrigadas
a assimilarem o discurso médico patologizante, como a única forma de
conquistarem a plenitude de sua identidade que será avaliada por questionários
e testes psicológicos, desenhados de acordo com as normas de gênero socialmente
produzidas ao longo de anos de influência da dominação masculina.
É óbvio que a
cirurgia de transgenitalização determina uma mudança radical que, não sendo
adequada a determinado indivíduo, poderá trazer riscos comprometedores da saúde
psicológica dessa pessoa. No entanto,
isso também acontece com outras cirurgias, a exemplo de cirurgias plásticas e bariátrica que, em alguns casos poderá demandar
acompanhamento psicológico, não para autorizar, mas apenas para dar o suporte
necessário para que o indivíduo possa fazer sua escolha em um nível seguro de
auto-conhecimento.
Mas veja bem! A
necessidade de adequações anatômicas do órgão sexual são muitas vezes provocadas
pelo ambiente social transfóbico que empurra muitas transexuais a se adequarem
aos rígidos padrões de gênero estabelecidos socialmente numa relação de poder,
fruto da histórica tradiçao que delegou ao universo feminino papéis restritos ao
mundo privado. Esse é, pois, o ambiente de onde a medicina está inserida, que
tenta a fórceps fazer o enquadramento entre composição biológica à identidade
de gênero, insistindo em dizer que, aquele que não se conforma com o seu corpo,
padece de uma anomalia que precisa ser corrigida por um processo cirúrgico,
quando na realidade essa necessidade deveria ser proveniente de uma manifestação
de vontade livre dessa imposição social altamente violenta e opressora.
A identidade, no
que concerne a personalidade do indivíduo, nada tem a ver com a biologia e muito
menos com a medicina, o que por essa razão, se faz necessária uma incursão mais
profunda naquilo que realmente informa a personalidade para determinar a
identidade de gênero de uma pessoa.
Feito isso e para
avaliar a completude do ser humano, faço algumas perguntas como sugestão de
reflexao apropriada ao debate. Os seres humanos podem ser lidos como animais
meramente reprodutores? É o órgão/aparelho sexual que importa para a
identificação do indivíduo como homem ou como mulher?
Para essas
respostas se faz necessário desapegar-se dos fatores que compõem o sexo
biológico para avaliar qual é a importância disso tudo para se considerar um
indivíduo como homem ou como mulher.
Não é a capacidade
procriativa, muito menos o pênis ou a vagina que determinam, respectivamente, a
masculinidade e a feminilidade. Aliado a isso, observe que há casos, por
exemplo, de homens que perderam seu órgão sexual e nem por isso perderam a sua
identidade masculina, da mesma forma que existem inúmeras mulheres que tiveram
que retirar o útero, tendo que se submeter a reposição da carga hormonal por
meios não naturais e que, mesmo assim, continuam sendo mulheres.
Sei que a
avaliação é complexa e o assunto palpitante, afinal de contas trata-se de uma
minoria sexual. Além disso, a marginalidade enfrentada por essa minoria empurra
seus integrantes para a invisibilidade, destinando a essas pessoas restritos espaços
à margem da sociedade que, por consequencia levam o senso comum a equivocadamente
confirmar a hipótese da anormalidade/transtorno classificada pela medicina.
4. O
Direito e a construção da cidadania das pessoas trans: a constitucionalização e
o respeito às normas internacionais de direitos humanos
No campo do
DIREITO, sem discutir qual corrente é majoritária, mesmo porque não é esse o
ponto da minha discussão, a questão é controvertida. Primeiramente porque não
há lei que retire os obstáculos do senso comum e da compreensão ultrapassada da
medicina, obstáculos que entendo ser altamente prejudiciais por negarem o
direito natural à identidade de gênero. A Lei de Registro Públicos, por
exemplo, instituída numa visao limitada de imutabilidade do prenome, é quase
uma norma de proibição de retificação do registro civil.
A afirmação de direitos especifícos às minorias,
não significa dar ou conceder privilégios, mas reconhecê-las em
sua plenitude para que possam ser retirados da condição de rebaixamento, fruto
de uma moral acrítica e de uma tradição histórica divorciada da realidade,
fundada na ideia de dominação. Para que as minorias possam ser reconhecidas, é
preciso ser fomentada a conciliação da distribuição de direitos com o
reconhecimento da identidade cultural ou social dos indivíduos que a elas
integram. [6]
A falta de reconhecimento promove a depreciação
das identidades que ficam vulneráveis à manipulação das opiniões públicas e
vitimadas pela opressão da maioria integrante do padrão socialmente imposto.
Desse modo, para se colmatar uma justa distribuição de direitos é indispensável
a promoção do reconhecimento dessas identidades para que essas minorias possam
também exercer uma cidadania plena, livres do rebaixamento e da opressão dos
padrões sociais que não se encaixam na realidade desses indivíduos. Isso
ocorre, pois a válvula motora da condição de rebaixamento desses grupos foi
construída com a propagação de uma cultura não reflexiva a respeito da
pluralidade de identidades sociais e culturais que circunda a essência humana.
Numa concepção de cidadania, não se admite a
inferiorização de alguns em detrimento de outros, muito menos a falta de
acesso a direitos tão essenciais ao exercício de uma ideal cidadania, calcada
na fruição de direitos fundamentais.
O sentido de uma democracia como regime político, deve
ser fundado na cidadania para todos, como base para o exercício dos poderes
constituídos pelo Estado, conciliando-se os princípios da liberdade, da
igualdade e da dignidade da pessoa humana. Um regime assim estabelecido impõe um
olhar especial que possa corrigir as vulnerabilidades de certas pessoas que,
por sua condição - aqui no caso de identidade de gênero - não tem garantida uma
justa participação na distribuição dos direitos fundamentais.
O reconhecimento e a apropriação da concepção de cidadania é de suma
importância para uma justiça pautada na distribuição equitativa dos benefícios.
As pessoas travestis e transexuais são estigmatizadas pela sociedade e tais
estigmas são frutos da sedimentação de um padrão institucional e histórico.
As pessoas trans sofrem pela “usurpação negativa de um bem imaterial”, pois
não há aceitação e respeito à sua condição diferente dos padrões convencionais
estabelecidos pela sociedade. Por essa razão, cabe ao Direito equilibrar as
distorções a fim de se promover o reconhecimento pleno da identidade de gênero
dessas pessoas.[7]
Elas “[8]
No plano
internacional de Direitos Humanos a compreensão a respeito da cidadania das
pessoas LGBT é orientada pelos Princípios de Yogyakarta que reputa a identidade
de gênero como essencial para “a dignidade e humanidade de cada pessoa”.
O referido
documento integrante dos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, estabelece
como identidade de gênero “a profundamente sentida experiência interna e
individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo
atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver,
por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios
médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive
vestimenta, modo de falar e maneirismos.”
“A orientação sexual e identidade de
gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua
personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade
e liberdade.” (destaquei)
Além dessa
interpretação, os Princípios de Yogyakarta determinam que os Estados-partes,
como é o caso do Brasil deverão:
“a) Garantir que todas as pessoas tenham capacidade
jurídica em assuntos cíveis, sem discriminação por motivo de orientação sexual
ou identidade de gênero, assim como a oportunidade de exercer esta capacidade,
inclusive direitos iguais para celebrar contratos, administrar, ter a posse,
adquirir (inclusive por meio de herança), gerenciar, desfrutar e dispor de
propriedade; b) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de
outros tipos que sejam necessárias para respeitar
plenamente e reconhecer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada
pessoa; c) Tomar todas as
medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias
para que existam procedimentos pelos quais todos os documentos de identidade emitidos
pelo Estado que indiquem o sexo/gênero da pessoa – incluindo certificados de
nascimento, passaportes, registros eleitorais e outros documentos – reflitam a
profunda identidade de gênero autodefinida por cada pessoa; d)
Assegurar que esses procedimentos sejam eficientes, justos e
não-discriminatórios e que respeitem a dignidade e privacidade das pessoas; e) Garantir que mudanças em documentos de
identidade sejam reconhecidas em todas as situações em que a identificação ou
desagregação das pessoas por gênero seja exigida por lei ou por políticas
públicas;” (destaquei)
Recentemente, no dia
26/09, o Conselho de Direitos Humanos (29a Sessão) do sistema global (ONU), com
participação efetiva do Estado Brasileiro, editou uma resolução expressando uma grave
preocupação com os atos de violência e discriminação contra as pessoas LGBT,
determinando ao Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH) o
monitoramento dessa violência para orientar boas práticas para a sua superação.
A nossa ordem
constitucional recepciona os tratados internacionais ratificados pelo Brasil no
seu ambito doméstico (art. 5º, § 3º) - tal como o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais
- que nas questões de orientação sexual e identidade de gênero, devem serem
interpretados à luz dos Princípios de Yogyakarta. As normas internacionais de
direitos humanos, são reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com
hierarquia supra-legal, atendendo e ampliando os direitos fundamentais
consignados na Constituição Brasileira.
Dentre esses
princípios temos, em primeiro lugar, a LIBERDADE, considerada pela
auto-determinação do indivíduo e pela autonomia da vontade para dirigir a sua
vida privada; a IGUALDADE e a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA que consistem
necessariamente “na eliminação de qualquer vestígio de discriminação até a
extensão e ampliação dos direitos sociais previstos na Constituição” [9]
O Superior
Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento firmado no sentido de que:
“Para o [a] transexual, ter
uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica
psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na
sociedade”, donde “afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar
sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade
sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” (STJ, REsp n.o
1.008.398/SP, DJe de 18.11.2009)
Não bastasse isso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao tentar transversalizar o conhecimento a respeito de gênero e sexualidade, na I Jornada de Direito à Saúde, editou os seguintes enunciados:
“Enunciado 42. Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito
enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a
identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a
cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome
no registro civil.
Enunciado 43. É possível a
retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de
transgenitalização."
O direito à
identidade integra os direitos da personalidade, tratando-se de direitos
subjetivos inatos e absolutos aos quais não cabe a ninguém, muito menos ao
Estado restringir. Esse direito independe, inclusive, de autorização, cabendo o
reconhecimento da sociedade e ao Estado propiciar os meios para que as pessoas
possam se apresentar da forma que melhor se identificam.
Muitos estados e
municípios, mesmo diante de suas limitaçoes, (pois cabe à União legislar sobre
direito civil), já garantem o reconhecimento à identidade das pessoas trans
pelo denominado NOME SOCIAL que aproxima os documentos dessas pessoas à sua
realidade de vida em sociedade. Esse reconhecimento também vem sendo estendido
às escolas e universidades públicas.
Infelizmente
quando o Judiciário nega direitos das pessoas trans, ele o faz na grande
maioria das vezes sob a justificativa da MEDICINA ou de lacuna da lei e em
todas essas hipóteses o faz contrariando a nossa ordem constituicional que
garante cidadania plena para todos indistintamente.
É preciso, pois
promover a devida constituicionalização do direito em observância à nossa ordem
convencional (dos tratados internacionais de direitos humanos) e de direitos
fundamentais, garantindo-se, pois, a ideal força normativa dos princípios
constitucionais de eficácia plena e de aplicação imediata (art. 5º, § 1º) que,
obrigatoriamente devem preencher a lacuna legislativa para a concretização da
dignidade das pessoas transexuais.
Cabe nesse sentido,
romper com as metologias interpretativas dogmáticas que se colocam como
obstáculo para a fruição plena dos direitos fundamentais. Para isso, é
necessária a utilização de uma metodologia apta a concretizar os princípios da
dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade para devolver
humanidade às pessoas travestis e transexuais.
O Direito no
Brasil não vem fazendo o esforço para a transversalização dos estudos mais
recentes da psicologia e das ciências sociais que, pelas razões acima avaliadas
são muito mais relevantes e adequados, do que a medicina para determinar o
conhecimento doutrinário.
A questão identitária
das pessoas trans encontra-se próxima de ser decidida pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) em ação direta de inconstitucionalidade ADI 4275, de autoria da
Procuradoria Geral da República, tendo ingressado como amici curiae o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (GADvS) e a Associação Brasileira
de Gays, Lésbicas e Trangêneros (ABGLT), além da repercussao geral reconhecida pela
suprema corte no RE 670.422.
Agora proponho a
seguinte reflexão: se mesmo diante todos esses sólidos estudos em torno da
compreensão da identidade de gênero, o juiz insiste em um laudo psicológico
para atestar a condição da transexualidade ou atrela a retificação do registro
civil à cirurgia de transgenitalização, ele demonstra, no mínimo, preguiça de
avaliar a realidade identitária vivida por aquela que demanda a retificação de
registro, o que pode ser facilmente constatado por prova documental e
testemunhal. Além disso, demonstra um total menosprezo com o sofrimento vivido
por uma pessoa que passa a ter sua identidade civil depondo contra a sua
realidade social aumentando a situação de marginalidade e discriminação
enfrentada por essas pessoas.
Para o jurista Flávio
Tartuce transmito a mensagem do constitucionalista Paulo Bonavides: “O Direito
ou liberta ou não é Direito. Não lhe reconhecemos outra função, outra filosofia,
outro escopo, outra validez. Não importa discutir-lhe a origem, mas o fim; o
fim da concretude social contemporânea, sobretudo quando se atenta que aí já
baixam sombras espessas sobre o futuro da liberdade e o destino dos povos.
Aquele fim é a vocação das Constituições. Não podem elas, (…) apartar-se, por
conseguinte, do constitucionalismo dirigente, vinculante, pragmatico. Fazê-lo
seria condená-las à ineficácia, à obsolescência, à fatalidade, desatando-as de
seus laços com o Estado social.” [10]
A leitura isolada
do artigo 13 do Código Civil, distante da compreensão das questões reais
enfrentadas pelas transexuais não pode servir de obstáculo para aprisiona-las
em seu próprio corpo. A funcionalidade da sexualidade não se limita a um órgão
sexual, não podendo a cirurgia de transgenitalização ser percebida como
“diminuição permanente da integridade física”, sobretudo quando a própria
medicina apresenta técnicas reconhecidas com sucesso para se manter a
funcionalidade do órgão sexual redesignado de pênis para a “neovagina”, não se
tratando mais de procedimento experimental (a transgenitalização de transexuais
masculinos, por outro lado, referente a neofaloplastia ainda é considerada pelo
CFM como cirurgia experimental) - cf. Parecer CFM 20/10
É preciso promover a constitucionalização do Direito que, sob a ótica da dignidade humana, deve garantir
a liberdade dessas pessoas realizarem as mudanças necessárias em seu corpo para o alcance da felicidade na sua conformação identitária. As regras não podem ser interpretadas como obstáculo para a
concretização dos princípios que visem a plenitude de vida do ser humano, sob
pena de se fazer o uso do Direito como instrumento de dominação e de opressão.
[1] BENTO, Berenice. O que é transexualidade. SP: Brasiliense, 2008.
[2] termo utilizado pelo antropólogo e
sociólogo francês Pierre Bordieu que em sua teoria “A dominação masculina”
denuncia os mecanismos utilizados pela família, igreja, escola e Estado para
neutralizar a violência que determina a construção social dos corpos para a
limitação de espaços destinados às mulheres e àqueles que não se adequam aos
padrões definidos com base nesse sistema de dominação. (BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria
Helena Kuhner. 12 ed. RJ: Bertrand Brasil, 2014).
[3] cf.
artigo FACCINETTI, Cristiana. A doença do prazer” in Revista de
História da Biblioteca Nacional. Sexo e poder no Brasil: como usamos e abusamos
de contradições. Ano 8. n. 93. Junho 2013. p. 32/33
[4]
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da
normalização in Sociologias. Porto
Alegre. Ano 11. n. 21, 2009, p. 150-182.
[5] cf. petição de ingresso da GADvs e ABGLT, patrocinada pelo advogado Paulo Iotti Vecchiatti.
[6] FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética? Revista Lua Nova, São Paulo 70: 101-138, 2007, p. 106.
[6] FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética? Revista Lua Nova, São Paulo 70: 101-138, 2007, p. 106.
[7] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos. SP. v. 2. n. 2, 2005.
[8] apesar de tratar de pessoas o sociólogo alemão
enfrenta a luta pelo reconhecimento das minorias in HONNETH, Axel. Luta por
reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução Luiz
Repa. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 277.
[9] APPIO, Eduardo. Direito das minorias. SP: RT, p. 197
[10] BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. SP: Malheiros, 2001.
Leia aqui a resposta do jurista Flávio Tartuce: Transexualidade x Transexualismo
Leia aqui a resposta do jurista Flávio Tartuce: Transexualidade x Transexualismo
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